sábado, novembro 03, 2007

Timor-Leste: Em Maubara, uma história de fiés e defuntos

Lusa - 2 de Novembro de 2007, 11:37

Pedro Rosa Mendes, da Agência Lusa

Díli - Quarta-feira, véspera de Todos-os-Santos, as crianças de Maubara (distrito de Liquiçá, a oeste de Díli) saíram das escolas, em festa, para limpar o cemitério da vila antes do Dia de Finados.

Em dia feriado, Timor-Leste assinala hoje, com particular intensidade, a data católica de Fiéis Defuntos.

À margem da romaria juvenil, à saída de Maubara, ficou um grupo de campas sem cemitério.

São campas rasas, várias sem nome, montículos de terra, cruzes de pau gastas pela chuva e gretadas pelo sol, entre o asfalto da estrada e o azul luminoso do mar que separa Timor da ilha indonésia de Alor.

"Ninguém toma conta das campas. As famílias estão nas montanhas, em aldeias isoladas", conta Christina Carrascalão à Agência Lusa.

"Aqui estão 11 vítimas do massacre de 17 de Abril de 1999, na nossa casa em Díli. Ali, há outros seis do massacre da igreja de Liquiçá, uma semana antes. E estes são os três que escaparam de Díli mas foram apanhados pelas milícias no regresso à aldeia".

"São 20. Com o meu irmão, 21".

O irmão de Christina Carrascalão, Manuel, ou Manelito (como era conhecido), foi o primeiro a morrer quando milícias pró-indonésias atacaram a casa da família em Lecidere, centro de Díli, num dos episódios mais brutais que antecederam o referendo de 30 de Agosto.

Manelito tinha 17 anos. Jovens eram também a maior parte das vítimas despejadas de um camião, quatro dias depois, "cortados e desmembrados, em caixões de cartão e embrulhados em plásticos", a seguir a Maubara.

"Mataram o meu irmão apenas porque não estava lá o meu pai", o septuagenário Manuel Viegas Carrascalão.

"Eles (as milícias) escolheram o alvo. E o alvo éramos nós", resume Christina Carrascalão.

Manelito morreu na vez de Manuel, ou seja, a adolescência de um nome morreu em vez da sua velhice biológica - e não o contrário.

Em Timor-Leste, entre fé católica e crenças animistas, o Dia de Finados serve, também, para apaziguar esta ordem perdida, onde aqueles que escaparam parecem o diminuitivo dos que desaparaceram.

Esta sobrevivência apoucada, quase vegetativa, salta à vista em Florindo de Jesus Brites, de Maubara: os seis golpes de catana que recebeu na casa dos Carrascalão deixaram-lhe um braço mais curto que o outro, descarnado; falta-lhe o anelar esquerdo; a mão direita, sem força, está virada para dentro, num ângulo fixo.

Santiago Cancela é outro exemplo do que, num homem, pode ficar defunto. Professor durante quase vinte anos antes de Abril de 1999, Cancela perdeu a capacidade de ler devido ao trauma.

"Eu olhava para as letras e não as conhecia", explicou o ex-professor à Lusa, na sua casa de palapa (madeira), em Lóis, ainda mais a oeste, na estrada para a fronteira com a Indonésia.

"Só em 2003 recuperei a linguagem", uma ressurreição também literal do sentido do mundo.

Santiago Cancela dedicou-se à pesca. Hoje, é o coordenador do programa de alfabetização no subdistrito de Maubara.

Florindo de Jesus Brites e Santiago Cancela integram a família alargada dos que, em Dia de Finados, homenageiam os parentes perdidos e dão graças por estar vivos.

Os dois perderam irmãos na grande casa de Lecidere, onde hoje funciona a delegação da Fundação Oriente.

Eles e outros sobreviventes ouvidos pela Lusa assinalam também o Dia de Fiéis Defuntos como oportunidade para reclamar dignidade para os mortos e justiça para os vivos.

"Se cuidarem dos nossos mortos, uma parte da justiça será feita. Mas não é suficiente", resume Florindo de Jesus Brites.

"Justiça e indemnização são coisas diferentes", sublinha o sobrevivente, notando que nenhuma das duas coisas foi até hoje providenciada.

Pelo menos, algumas das campas do 17 de Abril ganharam hoje a dignidade de túmulos de cimento, por iniciativa de Christina Carrascalão e de amigos de Manelito.

"Pensei que devia fazer alguma coisa", explica a irmã de Manelito, colaboradora do Centro de Estudos de Crimes de Guerra e Direitos Humanos da Universidade de Berkeley, Estados Unidos, e da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR) timorense.

"É bom para as famílias saber que alguém se preocupa com os seus entes queridos. É parte da sua cura, porque nós honramos os mortos muito a sério", acrescenta Christina Carrascalão.

Por vezes, até os mortos faltam: uma das campas selvagens de Maubara, a de Costadino Ramos, está vazia, contou à Lusa o tio do morto, Guido Ramos Ribeiro, chefe do suco Guguleuro, na montanha acima de Maubara.

"Ainda em Caicassa, antes da trasladação para a beira-mar, a campa do meu sobrinho foi aberta por internacionais das Nações Unidas, em 2002".

"Levaram os restos sem falar com ninguém da família ou da administração. Nunca os devolveram nem sabemos onde estão", acusa o tio dos três jovens.

Em vez dos restos de Costadino, a campa de Maubara tem "terra e pedras" da primeira campa em Caicassa, porque, para os timorenses, o lugar da decomposição é, também, uma parte do defunto.

É por isso que Manelito Carrascalão tem hoje flores frescas em duas campas: em Díli, onde primeiro foi sepultado, e na Fazenda Algarve, a plantação da família, nos montes de Liquiçá, no meio de campas dos massacres de 1975 e de árvores vivas onde alguém enxertou estranhas flores de plástico.

O Dia de Finados convoca, enfim, a aritmética incómoda de "um massacre que todos fazem o seu melhor por esquecer", diz Christina Carrascalão.

"Naquele dia, havia 120 refugiados na nossa casa. 12 foram mortos. 45 sobreviveram. Faça as contas. Então onde estão os outros?".

Lusa/fim

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Malai Azul. Lives in East Timor/Dili, speaks Portuguese and English.
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